O herói das avenidas
Antunes Ferreira
Crispim da Conceição, quando gaiato, sonhava ser o que quase todos os putos queriam, aviador. Aviador de balcão, gozava o Trindade, filho de pai ex-rico, que já andara no Valsassina, mas se encontrara depois na Escola Primária 127, ali ao Arco do Carvalhão. O merceeiro seu progenitor, Joaquim da Conceição, Jaquim para os amigos e para os mais chegados, naturalmente a sua patroa Lurdes o tratava assim, dera com os burrinhos na água quando o Guedes lhe trespassara a leitaria. E o moço que ansiava pela Força Aérea, ficara-se pela primária, em terra, não descolara.
Bom negócio, homem, bom negócio, olha lá só com os rabuçados da bola fazes uns larguíssimos carcanhois. Dois, um tostão. A caixa cheia, as cadernetas, a cola para colar os papeizinhos, as trocas e, finalmente, o número da bola, o único, que completava um só álbum, uma página para cada equipa 11 mais oito suplentes, o treinador, vinte quadradinhos que aliás eram rectangulozinhos onde se pegavam a cola de farinha os ases. A cores. Dizia o Guedes. Depois, fora o que se vira.
A vida põe e um qualquer deus dispõe. Hoje, Crispim é motorista da Carris. Dos articulados, os primeiros tinham sido os Ikarus, húngaros, sabe-se lá porquê. Do alto da mecânica criatura, agarrado ao volante, sentira-se, a princípio, como se tivesse alcançado o céu – voando. Não tirara o brevet, mas tirara a carta de condução, profissionais. Legal, em escola de condução. O Sarzedas, malandro confesso, ironizava sempre: tirar a carta de condução, a quem?
Mas as perigosíssimas nuvens tinham-se adensado, tornado mais carregadas. De cirros brancos tinham passado a cúmulos negros, envolventes, asfixiantes, densos. Do fumo dos escapes, quem sabe? Ele estava certo, no entanto, que elas se lhe tinham alojado na alma. Isto é, no sentir quotidiano porque a alma já dera o que tinha a dar.
O tráfego na cidade é uma babel permanentemente infernizada, mas que não vem abaixo, não rui, não se desmorona. E os condutores que são parte essencial desse malfadado trânsito (os que circulam a pé também, mas sem estatuto) uns camelos, criminosos, pelo menos em intenção. Homicidas involuntários? Nada disso. Falhados, falhadíssimos, mas bastas vezes acertando nos infelizes que se davam ao cuidado de atravessar nas passadeiras.
Os tugas consideram-se os melhores do Mundo e arredores na circulação auto, onde quer que seja, de avenidas a autoestradas, de becos a travessas, passando pelas pontes e pelos campos dos todo-terrenos. Autoridades circulantes, especialistas em velocidades, dominadores dos aceleradores, muito em especial imperadores nas rotundas.
Sinais de trânsito – para quê? Só atrapalham, estacionamento proibido, proibido virar à direita, à esquerda, quiçá ao centro. Triângulos de advertência, desnecessários. Limitadores de velocidades, lá vem o proibido. E que dizer dos sentidos proibidos? Só umas bestas se lembrariam de colocar tal sinalefa vermelha. E, como toda a gente sabe, o fruto proibido é o mais apetecido. Não ultrapassar no traço branco, ora é aqui mesmo que avanço, o gajo da frente é uma lesma, para caracol só lhe faltam os pauzinhos ao sol.
A cara-metade afirma, convicta que ele é o verdadeiro herói das avenidas, o Batman ao pé dele é somente um ajudante de auxiliar de praticante, Mas, Crispim confessa-se um cornudo das rodovias citadinas. Os outros, todos os outros, passam a vida a tentar enganá-lo nas minudências da embraiagem, nas subtilezas dos piscas, na arbitrariedade dos máximos, dos médios e, até, dos mínimos, para não falar nos farolins trazeiros/vermelhos, nem pensar nas luzes de estacionamento. Dos travões – nem pó.
Todavia, o homem que queria ser piloto de avião e hoje pilota machimbombos não pode desabafar com a Lurdecas. Ela está no campo oposto, na trincheira inimiga, faz parte dos deserdados da sorte mecânica, da sarjeta das viaturas, vulgo peões. Ela é mais peoa, mas um dia, sabendo como ele se autoclassifica, ainda a apanha na cama com outro… condutor.
(Também publicado no meu http://aminhatravessadoferreira.blogspot.com e no http://cuaoleu.blogspot.com, onde tal, como neste, apenas colaboro)