terça-feira, 20 de janeiro de 2009



A camisa e o casaco

Antunes Ferreira
C
laro que sabem. Há três Beiras em Portugal: a Alta, a Baixa e a Litoral. Os beirões são excelentes – mas falam axim e dijem Bijeu. A malta gosta de contar estórias sobre eles, não tanto como as de alentejanos, mas é axim. Há umas xemanas estibe em Bijeu. Adoro a capital da Beira Alta, cidade que, ainda recentemente, e de acordo com um estudo da organização DECO, a Defesa do Consumidor, mais precisamente em 2007, é a melhor para se viver em Portugal. E foram analisadas 76…

Reza a lenda da cidade, que em pleno processo da Reconquista, um membro de um grupo de guerreiros ali chegado pelo lado oriental, onde se intersectam os rios Pavia e Dão, perguntou: «Que viso (vejo) eu?». Desta pergunta, nasceria o nome da cidade. Bonito, ainda que a História não o confirme. Como é o caso do Viriato, que tem estátua na cidade e tudo e não está confirmado nem tem certidão narrativa de idade. E eu ralado, como diria o Vasco Santana. Ponto parágrafo.

Devem ter reparado que abandonei os xxx e os bbb e os jjj. Continuasse axim, perdão, assim e estava o caldo entornado. E, por caldo. É a zona do Dão, um caldo de se lhe tirar o chapéu, tinto ou branco. Muito. A morcela ou a chouriça, fritas, o cabrito à padeiro, no forno, com batatinhas coradas, são os álibis para a vinhaça. Como o queijo da Serra que por ali é mato. Quem por ali anda, palavra de honra, e não a bebe, é uma besta quadrada – é como ir a Roma e não ver o Papa. Ou, no mínimo, a Praça de São Pedro. Para não falar na Capela Sistina e no Miguel Ângelo.

Não vim aqui, porém, para falar de tectos, ainda que este seja uma citação ou até uma excitação que atesta a cultura do escriba. Presunção e água benta, cada um toma a que quer. Toma? A propósito. Perorava sobre o sumo da uva, convenientemente alcoolizado e engarrafado. E não me digam que se trata de publicidade paga. Dão é a região demarcada – e marcas e rótulos são uma caterva.

Volto, pois, ao néctar e a Baco. Destas pomadas dizem que sei. A modéstia, aliás natural, impede-me de confirmar a afirmação, ainda que. De libações está o Inferno cheio, bem como de pretensões, arrogâncias, corrupções e afins. Para não citar os outros. Deixem que vos diga que dever ser muito melhor ficar sob o domínio de Belzebu do que ir para o céu. Este, ao que dizem, é uma pasmaceira, só nuvens, harpas e azul, naturalmente celeste. Em baixo, com as gatinhas que lá estão é a orgia permanente. Grande Satanás.

Pronto. Fico-me por aqui em matéria de Dão e vou ao âmago da questão. Escrevo muito bem – não escrevo? E sou recatado e puro e esbelto. Que não subsistam dúvidas, muito menos risinhos sarcásticos. Quem dá o que pode, a mais não é obrigado. Acabado o prolegómenos, vou direitinho à estória que recolhi em Viseu. Nas falas, com vossa licença, retomarei o sotaque supra mencionado. Maravilha. Sem ele, a coisa ficaria insossa, e o pessoal começaria no bocejo, agravante da falta que cometeria. Aqui vai disto.

Dois irmãos, rapazotes, o Manel e o Jaquim, tinham por hábito ir à fruta da vizinha, sem ofensa para esta e sem qualquer ponta de má intenção. A virtuosa Senhora, de missa e comunhão diárias, era proprietária de uma leira abonada, onde vicejavam árvores frutíferas as mais diversas, gama abençoada.

Num dia, chegados pelas matinas, subiram a um castanheiro, e, empoleirados nos ramos, enfardavam os frutos correspondentes. Já o ágape se aproximava do fim, e o Manel: «Ó Jaquim, eu cá comi mais castanhas do ca tu». «Não comeste, não xenhora»! Olharam-se, suspeitosos um do outro. «Comi, xim»! «Eu é que comi mais e nada de discuxões»!

«Olha mano: comi mais, comi-as ca camija». «Ora exa: poijeu comi-as co cajaco»! E ficaram nessa. Castanha tem película e tem casca: a camija e o cajaco. Camisa e casaco. Estes beirões…

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domingo, 4 de janeiro de 2009

















A gripe e o feijão


Antunes Ferreira
Assim, pé ante pé, já estamos no quinto dia do primeiro mês do ano de 2009. Isto de calendários tem que se lhe diga. Mal um homem se precate, é virar a folha. Ou riscar o domingo, que - habitualmente - antecede a segunda-feira. De resto, esta última bem podia ser abolida, sabe-se lá, por decreto não, mas quiçá por lei da Assembleia da República, com a qual o PR se envolveu em questão embrulhada.

A famigerada segunda é a que se segue ao fim-de-semana. E podia muito bem acontecer, aprovada que fosse a proposta por maioria quase absoluta em São Bento - como se fora norma estatutário-autonómica dos Açores – que até os deputados da Nação se debruçassem sobre a terça. Não seria o caso, mas sinto que haveria muito povo que adoraria ver a jornada semanal de trabalho a começar na quarta.

Seria, também, uma achega preciosa para a produtividade nacional. Quando tanto se fala nela pela sua diminuta estatura (há até quem refira que é, sim, uma mini, piadistas…) os três dias laborais teriam um efeito interessante e sugestivo, no mínimo. O desemprego, que se antevê que aumente face à crise exotérica que se vai desenrolando, poderia diminuir, quiçá. Não sei muito bem como nem porquê, mas a esperança é a última coisa a morrer, todos o sabemos.

Abandonada a poole position, Janeiro prossegue sem devaneios. Com algum sobressalto, de quando em vez, mas que seria da sociedade se fosse monocolor? Que seria do azul se tudo fosse amarelo? Tal como era costume referir nas «notas oficiosas» do tempo da outra senhora, «o País está calmo, reina a ordem, e o progresso prossegue sem desfalecimentos».

Agora, a calma, a ordem e o progresso (Cavaco, antes das lições de dicção dadas pela Glória Matos, dizia pogresso, mas passou-lhe) têm de ser encarados por outro prisma. Não são exactamente o que eram. Alguns dizem que essas três componentes nem sequer subsistem, quanto mais dizer-se que existem. Mas, de mal agradecidos não reza a História.

Nestes cinco dias, quem reina é a gripe. Não é coisa que preocupe o cidadão eleitor, que já mira, desconfiado, as três idas às urnas no 2009 em que sobrevivemos. Isso sim, isso é motivo de inquirições e, mesmo, de interrogações. Em síntese: por quais deitar o voto? O leque é o habitual, as escolhas é que são tramadas. O campo de candidatos, de acordo com bastantes vozes, não é pobre – é paupérrimo. E o desuso do cartão de eleitor vai-se tornando prática que se avoluma – o que é péssimo. Stá tudo mudado.

Até a gripe, ainda que endémica, já não é o que foi. É certo que as idas às Urgências foram muitas e que motivaram engarrafamentos de dimensões apreciáveis. Aparentemente, foi tudo controlado e não houve motivo para pânicos. O recurso ao clássico abafe-se, abife-se e avinhe-se não terá sido de todo posto de parte, mas os antigripais embalados estão muitíssimo mais na moda. Houve e ainda há o reinado da gripe; há, também, o dos genéricos.

Nos pré-históricos tempos da minha juventude, era a gripe asiática. Uma festa. Escolas encerradas, serviços públicos a meia haste, transportes colectivos a conta-gotas. Eu, que a ela escapei (não sei como, mas escapei) gozava, como se dizia então, à brava. No meu bairro, o Restelo, visitava os meus amigos e colegas acamadíssimos, atafulhados de cobertores, sustentando-se a aspirinas e chá de limão com mel. Não esquecendo as papas de linhaça. Cuidado, menino, com o perigo do contágio, diziam-me. E cá o rapaz, ralado, como o Vasco Santana no Pátio das Cantigas.

Na verdade, as águas correm sob as pontes e não voltam atrás. Porém, são diferentes. E, ocorre-me de imediato, o comentário de um soldado cozinheiro preto em Angola. Meu arferes, istá tudo mudado. Antes, um home comia os feijão e depois fazia pum, pum. Hoji, só faz pfff, pfff.

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