sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

ALGUÉM TEM DE ESCREVER

O herói das avenidas

Antunes Ferreira
Crispim da Conceição, quando gaiato, sonhava ser o que quase todos os putos queriam, aviador. Aviador de balcão, gozava o Trindade, filho de pai ex-rico, que já andara no Valsassina, mas se encontrara depois na Escola Primária 127, ali ao Arco do Carvalhão. O merceeiro seu progenitor, Joaquim da Conceição, Jaquim para os amigos e para os mais chegados, naturalmente a sua patroa Lurdes o tratava assim, dera com os burrinhos na água quando o Guedes lhe trespassara a leitaria. E o moço que ansiava pela Força Aérea, ficara-se pela primária, em terra, não descolara.

Bom negócio, homem, bom negócio, olha lá só com os rabuçados da bola fazes uns larguíssimos carcanhois. Dois, um tostão. A caixa cheia, as cadernetas, a cola para colar os papeizinhos, as trocas e, finalmente, o número da bola, o único, que completava um só álbum, uma página para cada equipa 11 mais oito suplentes, o treinador, vinte quadradinhos que aliás eram rectangulozinhos onde se pegavam a cola de farinha os ases. A cores. Dizia o Guedes. Depois, fora o que se vira.




A vida põe e um qualquer deus dispõe. Hoje, Crispim é motorista da Carris. Dos articulados, os primeiros tinham sido os Ikarus, húngaros, sabe-se lá porquê. Do alto da mecânica criatura, agarrado ao volante, sentira-se, a princípio, como se tivesse alcançado o céu – voando. Não tirara o brevet, mas tirara a carta de condução, profissionais. Legal, em escola de condução. O Sarzedas, malandro confesso, ironizava sempre: tirar a carta de condução, a quem?

Mas as perigosíssimas nuvens tinham-se adensado, tornado mais carregadas. De cirros brancos tinham passado a cúmulos negros, envolventes, asfixiantes, densos. Do fumo dos escapes, quem sabe? Ele estava certo, no entanto, que elas se lhe tinham alojado na alma. Isto é, no sentir quotidiano porque a alma já dera o que tinha a dar.

O tráfego na cidade é uma babel permanentemente infernizada, mas que não vem abaixo, não rui, não se desmorona. E os condutores que são parte essencial desse malfadado trânsito (os que circulam a pé também, mas sem estatuto) uns camelos, criminosos, pelo menos em intenção. Homicidas involuntários? Nada disso. Falhados, falhadíssimos, mas bastas vezes acertando nos infelizes que se davam ao cuidado de atravessar nas passadeiras.

Os tugas consideram-se os melhores do Mundo e arredores na circulação auto, onde quer que seja, de avenidas a autoestradas, de becos a travessas, passando pelas pontes e pelos campos dos todo-terrenos. Autoridades circulantes, especialistas em velocidades, dominadores dos aceleradores, muito em especial imperadores nas rotundas.

Sinais de trânsito – para quê? Só atrapalham, estacionamento proibido, proibido virar à direita, à esquerda, quiçá ao centro. Triângulos de advertência, desnecessários. Limitadores de velocidades, lá vem o proibido. E que dizer dos sentidos proibidos? Só umas bestas se lembrariam de colocar tal sinalefa vermelha. E, como toda a gente sabe, o fruto proibido é o mais apetecido. Não ultrapassar no traço branco, ora é aqui mesmo que avanço, o gajo da frente é uma lesma, para caracol só lhe faltam os pauzinhos ao sol.

A cara-metade afirma, convicta que ele é o verdadeiro herói das avenidas, o Batman ao pé dele é somente um ajudante de auxiliar de praticante, Mas, Crispim confessa-se um cornudo das rodovias citadinas. Os outros, todos os outros, passam a vida a tentar enganá-lo nas minudências da embraiagem, nas subtilezas dos piscas, na arbitrariedade dos máximos, dos médios e, até, dos mínimos, para não falar nos farolins trazeiros/vermelhos, nem pensar nas luzes de estacionamento. Dos travões – nem pó.


Todavia, o homem que queria ser piloto de avião e hoje pilota machimbombos não pode desabafar com a Lurdecas. Ela está no campo oposto, na trincheira inimiga, faz parte dos deserdados da sorte mecânica, da sarjeta das viaturas, vulgo peões. Ela é mais peoa, mas um dia, sabendo como ele se autoclassifica, ainda a apanha na cama com outro… condutor.

(Também publicado no meu http://aminhatravessadoferreira.blogspot.com e no http://cuaoleu.blogspot.com, onde tal, como neste, apenas colaboro)



terça-feira, 20 de janeiro de 2009



A camisa e o casaco

Antunes Ferreira
C
laro que sabem. Há três Beiras em Portugal: a Alta, a Baixa e a Litoral. Os beirões são excelentes – mas falam axim e dijem Bijeu. A malta gosta de contar estórias sobre eles, não tanto como as de alentejanos, mas é axim. Há umas xemanas estibe em Bijeu. Adoro a capital da Beira Alta, cidade que, ainda recentemente, e de acordo com um estudo da organização DECO, a Defesa do Consumidor, mais precisamente em 2007, é a melhor para se viver em Portugal. E foram analisadas 76…

Reza a lenda da cidade, que em pleno processo da Reconquista, um membro de um grupo de guerreiros ali chegado pelo lado oriental, onde se intersectam os rios Pavia e Dão, perguntou: «Que viso (vejo) eu?». Desta pergunta, nasceria o nome da cidade. Bonito, ainda que a História não o confirme. Como é o caso do Viriato, que tem estátua na cidade e tudo e não está confirmado nem tem certidão narrativa de idade. E eu ralado, como diria o Vasco Santana. Ponto parágrafo.

Devem ter reparado que abandonei os xxx e os bbb e os jjj. Continuasse axim, perdão, assim e estava o caldo entornado. E, por caldo. É a zona do Dão, um caldo de se lhe tirar o chapéu, tinto ou branco. Muito. A morcela ou a chouriça, fritas, o cabrito à padeiro, no forno, com batatinhas coradas, são os álibis para a vinhaça. Como o queijo da Serra que por ali é mato. Quem por ali anda, palavra de honra, e não a bebe, é uma besta quadrada – é como ir a Roma e não ver o Papa. Ou, no mínimo, a Praça de São Pedro. Para não falar na Capela Sistina e no Miguel Ângelo.

Não vim aqui, porém, para falar de tectos, ainda que este seja uma citação ou até uma excitação que atesta a cultura do escriba. Presunção e água benta, cada um toma a que quer. Toma? A propósito. Perorava sobre o sumo da uva, convenientemente alcoolizado e engarrafado. E não me digam que se trata de publicidade paga. Dão é a região demarcada – e marcas e rótulos são uma caterva.

Volto, pois, ao néctar e a Baco. Destas pomadas dizem que sei. A modéstia, aliás natural, impede-me de confirmar a afirmação, ainda que. De libações está o Inferno cheio, bem como de pretensões, arrogâncias, corrupções e afins. Para não citar os outros. Deixem que vos diga que dever ser muito melhor ficar sob o domínio de Belzebu do que ir para o céu. Este, ao que dizem, é uma pasmaceira, só nuvens, harpas e azul, naturalmente celeste. Em baixo, com as gatinhas que lá estão é a orgia permanente. Grande Satanás.

Pronto. Fico-me por aqui em matéria de Dão e vou ao âmago da questão. Escrevo muito bem – não escrevo? E sou recatado e puro e esbelto. Que não subsistam dúvidas, muito menos risinhos sarcásticos. Quem dá o que pode, a mais não é obrigado. Acabado o prolegómenos, vou direitinho à estória que recolhi em Viseu. Nas falas, com vossa licença, retomarei o sotaque supra mencionado. Maravilha. Sem ele, a coisa ficaria insossa, e o pessoal começaria no bocejo, agravante da falta que cometeria. Aqui vai disto.

Dois irmãos, rapazotes, o Manel e o Jaquim, tinham por hábito ir à fruta da vizinha, sem ofensa para esta e sem qualquer ponta de má intenção. A virtuosa Senhora, de missa e comunhão diárias, era proprietária de uma leira abonada, onde vicejavam árvores frutíferas as mais diversas, gama abençoada.

Num dia, chegados pelas matinas, subiram a um castanheiro, e, empoleirados nos ramos, enfardavam os frutos correspondentes. Já o ágape se aproximava do fim, e o Manel: «Ó Jaquim, eu cá comi mais castanhas do ca tu». «Não comeste, não xenhora»! Olharam-se, suspeitosos um do outro. «Comi, xim»! «Eu é que comi mais e nada de discuxões»!

«Olha mano: comi mais, comi-as ca camija». «Ora exa: poijeu comi-as co cajaco»! E ficaram nessa. Castanha tem película e tem casca: a camija e o cajaco. Camisa e casaco. Estes beirões…

Também publicado em www.aminhatravessadoferreira.blospot.com e www.cuaoleu.blogspot.com

domingo, 4 de janeiro de 2009

















A gripe e o feijão


Antunes Ferreira
Assim, pé ante pé, já estamos no quinto dia do primeiro mês do ano de 2009. Isto de calendários tem que se lhe diga. Mal um homem se precate, é virar a folha. Ou riscar o domingo, que - habitualmente - antecede a segunda-feira. De resto, esta última bem podia ser abolida, sabe-se lá, por decreto não, mas quiçá por lei da Assembleia da República, com a qual o PR se envolveu em questão embrulhada.

A famigerada segunda é a que se segue ao fim-de-semana. E podia muito bem acontecer, aprovada que fosse a proposta por maioria quase absoluta em São Bento - como se fora norma estatutário-autonómica dos Açores – que até os deputados da Nação se debruçassem sobre a terça. Não seria o caso, mas sinto que haveria muito povo que adoraria ver a jornada semanal de trabalho a começar na quarta.

Seria, também, uma achega preciosa para a produtividade nacional. Quando tanto se fala nela pela sua diminuta estatura (há até quem refira que é, sim, uma mini, piadistas…) os três dias laborais teriam um efeito interessante e sugestivo, no mínimo. O desemprego, que se antevê que aumente face à crise exotérica que se vai desenrolando, poderia diminuir, quiçá. Não sei muito bem como nem porquê, mas a esperança é a última coisa a morrer, todos o sabemos.

Abandonada a poole position, Janeiro prossegue sem devaneios. Com algum sobressalto, de quando em vez, mas que seria da sociedade se fosse monocolor? Que seria do azul se tudo fosse amarelo? Tal como era costume referir nas «notas oficiosas» do tempo da outra senhora, «o País está calmo, reina a ordem, e o progresso prossegue sem desfalecimentos».

Agora, a calma, a ordem e o progresso (Cavaco, antes das lições de dicção dadas pela Glória Matos, dizia pogresso, mas passou-lhe) têm de ser encarados por outro prisma. Não são exactamente o que eram. Alguns dizem que essas três componentes nem sequer subsistem, quanto mais dizer-se que existem. Mas, de mal agradecidos não reza a História.

Nestes cinco dias, quem reina é a gripe. Não é coisa que preocupe o cidadão eleitor, que já mira, desconfiado, as três idas às urnas no 2009 em que sobrevivemos. Isso sim, isso é motivo de inquirições e, mesmo, de interrogações. Em síntese: por quais deitar o voto? O leque é o habitual, as escolhas é que são tramadas. O campo de candidatos, de acordo com bastantes vozes, não é pobre – é paupérrimo. E o desuso do cartão de eleitor vai-se tornando prática que se avoluma – o que é péssimo. Stá tudo mudado.

Até a gripe, ainda que endémica, já não é o que foi. É certo que as idas às Urgências foram muitas e que motivaram engarrafamentos de dimensões apreciáveis. Aparentemente, foi tudo controlado e não houve motivo para pânicos. O recurso ao clássico abafe-se, abife-se e avinhe-se não terá sido de todo posto de parte, mas os antigripais embalados estão muitíssimo mais na moda. Houve e ainda há o reinado da gripe; há, também, o dos genéricos.

Nos pré-históricos tempos da minha juventude, era a gripe asiática. Uma festa. Escolas encerradas, serviços públicos a meia haste, transportes colectivos a conta-gotas. Eu, que a ela escapei (não sei como, mas escapei) gozava, como se dizia então, à brava. No meu bairro, o Restelo, visitava os meus amigos e colegas acamadíssimos, atafulhados de cobertores, sustentando-se a aspirinas e chá de limão com mel. Não esquecendo as papas de linhaça. Cuidado, menino, com o perigo do contágio, diziam-me. E cá o rapaz, ralado, como o Vasco Santana no Pátio das Cantigas.

Na verdade, as águas correm sob as pontes e não voltam atrás. Porém, são diferentes. E, ocorre-me de imediato, o comentário de um soldado cozinheiro preto em Angola. Meu arferes, istá tudo mudado. Antes, um home comia os feijão e depois fazia pum, pum. Hoji, só faz pfff, pfff.

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